Como é que se pode fugir àquilo que mexe com a nossa força de viver? Sobre a coragem para sermos quem somos.

Navegar é preciso, viver não é preciso

Esta frase acompanha os meus pensamentos há muitos anos e durante algum tempo não a compreendi. A querida Amanda, que participou no Retiro de Yoga de Junho, lembrou-nos dela numa das dinâmicas de grupo que fizemos, a tempo de eu ter de decidir o que fazer profissionalmente a partir de Setembro.

No século I a.c., o general romano Pompeu encorajava marinheiros receosos dizendo “Navigare necesse, vivere non est necesse.”

No século XIV o poeta italiano Petrarca traduzia a expressão para “Navegar é preciso, viver não é preciso.”

“Quero para mim o espírito dessa frase”, escreveu depois Fernando Pessoa.

Caetano Veloso escreveu mais tarde “Os Argonautas”, novamente: “Navegar é preciso, viver não é preciso…”

“Navegar é preciso? Sim! Navegar é uma viagem exacta. Fazia-se com bússolas e astrolábios. Hoje, faz-se com satélites e GPS.

Viver não é preciso? Não!
Não é exacto. É uma viagem feita de opções, medos, forças, inseguranças, persistências, constâncias e transições …

Viver não é preciso? Não!
Quando viver é sonhar, ousar, planear, arriscar, empreender, realizar…”

O que tem tudo isto a ver com o Yoga e comigo?
É que viver não é preciso, nem nunca será, então melhor será fazermos aquilo que amamos, ousarmos ser aquilo que verdadeiramente somos e que queremos ser.

O yoga tem um conceito um pouco diferente de Eu do que aquele a que nos habituámos. Para nós “Eu não sou assim”, “Eu não gosto disso”, “Eu não admito isso”, “Eu quero isto”, “Eu decidi”. É o eu dos sentimentos, pensamentos, o dono na própria vida. Para o Yoga é apenas o Ego que faz, diz e pensa. E, diz o Yoga, o Ego é a causa de todo o sofrimento, então para que o quereremos? O que é verdadeiro, permanente, perfeito, e por isso ausente de sofrimento, é o nosso Eu Superior, algo que transcende o Ego e a sua existência baseada em desejos, aversões e experiências sensoriais, por definição passageiras. O Eu superior é algo permanente, diria até que igual e o mesmo em todos os seres humanos. Assim, o objectivo do Yoga é transcender o Ego, superar essa condicionante, evitando o sofrimento e encontrando a paz.

Tudo isto poderá ser potencialmente alcançável para um monge budista a viver no Tibete há alguns anos, isolado da vida em sociedade, e para nós? Existe algum verdadeiro “caminho do meio”?

Claro… antes de mais porque somos e fazemos o que quisermos, a vida está cheia de possibilidades. Como disse Agostinho da Silva “Provavelmente, em todos nós, cada coisa que somos é apenas uma das coisas que podíamos ser”.
Acharmos que não somos bons o suficiente ou que não somos capazes de cumprir todos os mandamentos correctos para sermos uma pessoa feliz e liberta, aos olhos de quaisquer filosofias ou religiões, apenas prolonga esta forma de viver errada, que nos causa sofrimento.

Em que ficamos?
Estamos a 4400 kms do Tibete e continuamos a precisar de viver uma vida menos atormentada e problemática.

Proponho-me a mim própria um “caminho do meio” não oficial. Um caminho em que sabemos que no dia-a-dia temos de viver com aquilo que é o nosso Ego: as nossas manias, os nossos gostos e desgostos, os nossos sentimentos, as nossas vontades, a nossa maneira de pensar, de ser, de vestir, de falar… enfim, tudo aquilo que nos distingue dos outros e que queremos que assim o faça. Se temos de viver com esse Ego, então bora torná-lo o melhor possível, o melhor que conseguirmos, o melhor que soubermos. Aceitar esse Ego, como algo que faz parte da natureza humana, aceitar como um observador, que simplesmente observa e constata, sem julgar.
Depois, se quisermos viver a tal vida mais feliz e mais constante, tentamos trabalhar com esse Ego, em vez de o eliminar (essa parte fica apenas para as aulas de Yoga e meditação!). E trabalhar o Ego é percebermos quem ele é, o que representa, o que o distingue dos outros, o que o une aos outros…! E o que somos requer coragem para o compreender.
Por fim, como queremos que o nosso Ego seja, o que sonhamos? O que nos orgulha à noite, quando vamos dormir? O Yoga diz que o orgulho é fonte de conflitos, e é verdade. Mas ele faz parte do nosso modus vivendi, então que o tornemos o melhor que pudermos, porque o orgulho integra o Ego. Que sejamos alguém de quem nos orgulhemos ao fim do dia.

Este é o equilíbrio a que me proponho. Porque de facto, perdido por 100 não é perdido por mil. Perdido por 100 é apenas isso, perdido por exactamente 100.

Para mim, fazer as pazes com o Ego e honrá-lo, dando-lhe o melhor que sei, passou por decidir dedicar-me a 100% ao Yoga e aos Retiros Espirituais. 

Como é que se pode fugir àquilo que mexe com a nossa força de viver?

Coragem, força, determinação, crença, resiliência, é o que desejo a quem está a iniciar projectos incertos ou a todos os que ainda apenas sonham em fazê-lo.

Haverá momentos de dúvida. Acho que os tenho, sem exagero, todos os dias. Haverá pressões externas, haverá preocupações, haverá momentos de cansaço e até de divagações sobre o que é isto de viver, porque começamos a questionar tudo.
Mas, ao fim do dia, vou para a cama com medo de que o que estou a fazer não resulte, que a abordagem não esteja a ser a melhor, que deveria mudar isto ou aquilo, investir mais nesta ou naquela área, e isso é óptimo! Por mais estranho que possa parecer, é melhor ter medo do que já estou efectivamente a fazer, da acção, do que da inacção, medo de que nunca venha a fazer o que adoraria estar a tentar…

Tudo isto faz parte do percurso, e se o Yoga significa Unir, se Hatha significa Sol e lua, se a prática serve para encontrarmos o equilíbrio, e se a vida é feita de opostos, todos os dias, constantemente, que encontremos então o equilíbrio entre o medo e a coragem, a insegurança e a confiança, nós e os outros,  a euforia e a depressão, o que queremos e o que devemos, a acção e a inacção…

Mudar para o que é novo é um salto. Um salto que requer fé. 
É um pouco como fazer algumas invertidas no Yoga. Só começamos realmente no dia em que tivermos a coragem de dar o salto. Primeiro, com a ajuda da parede, sabemos que ela está lá, e mesmo assim o salto requer algo que na altura nos parece com loucura! Depois da mestria da coragem requerida para o impulso inicial, vem a necessidade de força para encontrar a estabilidade, para a manutenção. Enquanto ainda nos vamos atrapalhando com a força, lembra-mo-nos que sem equilíbrio nunca sairemos dali. Fazemos malabarismos entre força e equilíbrio, mas não tem problema, estamos cheios de nós, felizes e orgulhosos porque já tivemos a determinação e a audácia de dar o salto. Depois disto quase tudo parece fácil, mas não é. Um dia teremos de sair da parede e enfrentar novamente a queda, agora mais real, porque já não existe suporte. Embora mais real, já temos ferramentas para lidar com o medo: tivemos coragem, tivemos força e já encontrámos o equilíbrio (ou quase…). Sair da parede requer apenas fé. E estarmos disponíveis para cair, simplesmente porque sabemos que vale a pena.
E isso só nós é que sabemos, mais ninguém sabe por nós.

É isso, dar um salto para o que é novo requer muitas coisas, mas sobretudo requer fé. E a fé é um sentimento com muito alimento, mas apenas para nós próprios, é nosso, ninguém pode ter fé por nós, nem podemos ter fé pelos outros.

Sim, é um cliché, mas agradeço a todos os que me disseram esta frase até hoje, directa ou indirectamente: Façam aquilo que vos fizer felizes!

Sem esquecer Tapas e Abhyasa, a Austeridade e a Prática Disciplinada. Porque parte deste caminho de coexistência saudável com o Ego, requer que saibamos distinguir claramente aquilo que somos, que queremos ser, daquilo que talvez até sejamos mas que poderia ser melhor. A preguiça aparecerá sempre, o comodismo também, a insegurança e os medos de certeza, mesmo quando fazemos aquilo de que gostamos. Nesses momentos, lá vamos buscar o significado de Tapas e Abhyasa. Nada se consegue sem esforço. É preciso coragem para ser diferente, então que tenhamos o Ego corajoso e audaz!

Por isto mesmo, fico muito feliz por poder finalmente apresentar-vos o novo projecto HAPPY RETREATS, para além do já conhecido Yoga Masala, que continua com as aulas de Yoga de grupo, particulares e em empresas.

Que o Yoga e a meditação vos dêem clareza para compreender Tapas, aquilo que devemos mudar e a que teremos de aplicar disciplina; Isvara Pranidhana, aquilo que não irá mudar e que não podemos controlar, a que teremos de nos render; e por último Svadhyaya, o estudo ou a reflexão sobre nós mesmos, quem somos e qual a nossa natureza, a introspecção, que nos levará a compreender a que deveremos aplicar Tapas ou Isvara Pranidhana.

Um excelente inicio de época!

Rita

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